Hidrelétricas causarão extinções
O cascudo-zebra (Hypancistrus
zebra) não é empreiteiro nem político, não está denunciado na Lava Jato e não
levou um centavo de propina pela usina de Belo Monte. No entanto, recebeu a
pena mais dura de todas pela construção da superfaturada hidrelétrica no Pará:
a morte. Quando o reservatório encher, secando a Volta Grande do Xingu, os
pedrais onde esse pequeno peixe ornamental vive ficarão rasos e quentes demais
para ele. Como só ocorre naquela região, o cascudo-zebra poderá ser extinto na
natureza.
O mesmo destino aguarda diversas
outras espécies que habitam ambientes únicos de rios amazônicos que cederão
lugar a hidrelétricas. É o que sugere um estudo publicado no periódico
Conservation Biology por um grupo de pesquisadores dos EUA, do Brasil e do Reino
Unido.
Segundo o trabalho, que fez uma
síntese da literatura científica disponível sobre hidrelétricas e extinções na
Amazônia, as 437 usinas construídas, em implantação ou em projeto nos nove
países amazônicos (90% delas no Brasil) acabarão com habitats raros dos rios da
região, como corredeiras e pedrais. Nesses locais existe alta taxa de
endemismo, ou seja, de espécies que não existem em nenhum outro lugar do
planeta. Como corredeiras e pedrais também são os lugares que marcam desníveis
dos rios amazônicos, é nessas áreas que os planejadores do setor hidrelétrico
escolhem fazer barragens, que na maior parte dos casos afogam esses habitats
(Belo Monte é uma exceção, pois provocará o efeito oposto).
Isso causa a extinção de peixes e
plantas aquáticas que dependem do pulso sazonal dos rios. E leva junto toda a
fauna terrestre associada, como morcegos, aves, roedores e anfíbios.
“Estamos, enquanto brasileiros,
decretando o óbito de 3% a 5% da biota amazônica”, disse ao OC o ecólogo
paraense Carlos Peres, professor da Universidade de East Anglia, no Reino
Unido. Ele é coautor do estudo, liderado por seu ex-aluno Alex Lees, hoje na
Universidade Cornell, nos EUA. Peres diz que o setor elétrico já mapeou todos
os rios com potencial hidrelétrico na Amazônia – que é onde está quase todo o
potencial hidrelétrico remanescente no Brasil. “Todos eles são suscetíveis à
expansão das usinas”, afirma.
Segundo os pesquisadores, as
ameaças das hidrelétricas à biodiversidade não se dão apenas pelo desmatamento
induzido, mas também – e principalmente – por mudanças nos ambientes aquáticos.
As barragens causam problemas aos peixes migratórios ao desconectar trechos de
rios, e a espécies adaptadas ao ambiente de corredeira, como os cascudos, ao
reduzir a velocidade da água, criando o que os cientistas chamam de ambientes
“lênticos”, ou de remanso. Nesses ambientes, a oxigenação da água é mais baixa,
o que prejudica algumas espécies muito especializadas para viver ali e favorece
espécies mais generalistas, como as invasoras.
As soluções de mitigação de
impactos fornecidas pelos empreendedores não conseguem evitar a formação desses
ambientes lênticos e frequentemente falham ao atacar a questão da desconexão.
Na usina de Santo Antônio, no rio Madeira, por exemplo, ficou famosa a “crise
do bagre” – a antecipada redução dos estoques comerciais de grandes peixes, que
não conseguiriam transpor a barragem para se reproduzir rio acima. Os
empreendedores gastaram milhões de reais construindo um canal lateral em forma
de escada que simulava o ambiente pedregoso do fundo do rio, só para descobrir
que os peixes não a utilizavam – seu instinto era seguir o curso principal do
Madeira.
No caso de Belo Monte, as
principais vítimas são os peixes que evoluíram em micro-habitats, que são
achados em alguns pedrais e não em outros dentro da mesma Volta Grande. “Você
tem graus incríveis de microendemismo”, diz Lees. O cascudo-zebra, por exemplo,
só foi descoberto em 1991 e já está criticamente ameaçado de extinção. Um dos
coautores do novo estudo, Jansen Zuanon, do Inpa (Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia) está neste momento descrevendo uma nova espécie de
cascudo ornamental que aparentemente só habita as zonas mais profundas da Volta
Grande. As duas espécies podem ser muito impactadas ou extintas com a redução
da vazão do rio naquela área.
Em alguns casos, capítulos
inteiros da história da vida na Terra podem estar em risco. É o caso das
alfaces d’água (Podostemaceae), plantas que dependem dos ciclos de cheia e seca
dos rios encachoeirados da Amazônia. Essas plantas formam uma “radiação
adaptativa”, ou seja, várias espécies surgiram muito rapidamente a partir de um
mesmo ancestral. Todas as espécies endêmicas de Podostemaceae estão ameaçadas
nos sítios de hidrelétricas.
Os próprios estudos de impacto
das usinas têm revelado espécies novas, como um sapo que acena em vez de cantar
– porque ninguém conseguiria ouvir o canto em meio ao som das corredeiras. Os
cientistas temem que algumas plantas e animais sejam perdidas antes de serem
descritas.
“O que nós vemos no noticiário
são preocupações com espécies carismáticas de fauna de grande porte e com seres
humanos. Mas as grandes perdas são de peixes e grandes invertebrados”, afirma
Lees, um britânico que trabalhou durante seis anos no Museu Paraense Emílio
Goeldi, em Belém, antes de se mudar para os EUA. “Me incomoda que não haja
muitos estudos focando em extinções.”
Lees, Peres e colegas apontam o
paradoxo de que várias das espécies ameaçadas pelas usinas são protegidas por
lei contra caça e comercialização, por estarem na lista vermelha do Ibama – mas
há mecanismos legais para permitir sua extirpação completa por projetos de
hidrelétricas, sob os rótulos de “interesse social” e “utilidade pública”.
“Nos EUA, a Lei de Espécies
Ameaçadas veda qualquer projeto, por mais estratégico que seja, se há uma
espécie ameaçada no caminho”, diz Carlos Peres. “No Brasil nós estamos
presidindo o processo de extinção de várias espécies.”
Energia Limpa
As hidrelétricas geram a maior
parte da eletricidade do país hoje, e sua expansão é defendida pelo governo
como única opção para gerar energia “limpa” e “firme” – embora dúvidas venham
sendo levantadas sobre as premissas que baseiam a expansão das barragens. A
INDC, o plano climático do Brasil para 2025 e 2030, prevê que 66% da matriz
seja hidrelétrica, o que incluiria a construção das polêmicas usinas do
complexo Tapajós, no Pará.
Peres e colegas defendem um freio
de arrumação a essa expansão, sob pena de os cenários aventados pelo estudo se
concretizarem. Segundo eles, todo o processo de licenciamento de usinas deveria
ser revisto, incorporando a avaliação ambiental estratégica de toda a bacia –
algo que o governo promete desde 2006, mas que nunca aconteceu de verdade no
licenciamento de usinas, que começa depois que a decisão de construir já foi
tomada. “O licenciamento é um processo sem dentes, para inglês ver”, diz Peres.
Relatórios de impacto ambiental
precisam ser melhorados, e “em muitos casos, esses projetos precisam ser
cancelados”, afirma o pesquisador paraense. Para ele, a ameaça de extinção a
uma espécie endêmica deveria ser razão para cancelar uma hidrelétrica. A
demanda adicional de energia poderia ser suprida com novas renováveis e, para a
Amazônia, com pequenas centrais hidrelétricas. “Como maior país tropical do
mundo e liderança em biodiversidade, o Brasil deveria se comportar de outra
forma.”
Procuradas pelo Site Observatório
do Clima, a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que planeja a expansão
hidrelétrica, e a Norte Energia, proprietária da usina de Belo Monte não se manifestou
sobre o assunto.
Fonte: Claudio Angelo - Site Observatório do Clima
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