Minas abandonadas ameaçam comunidades e ambiente - Parte 2


A tragédia espreita
De Belo Horizonte até Rio Acima são 35 km. Com pouco mais de 9 mil habitantes, a história do município está ligada à rota de exploração do ouro. É lá que fica a mina do Engenho D’Água, de responsabilidade da Mundo Mineração Ltda., uma subsidiária brasileira da australiana Mundo Minerals Ltd., que chegou para explorar o minério em 2008, quando obteve a sua primeira licença de operação, válida até 2012. Foi quando os donos sumiram, deixando para trás duas barragens de rejeitos num cenário com carros enferrujados e produtos químicos mal armazenados.
A primeira das bacias de rejeitos, que fica acima da segunda, está com a capacidade de armazenamento esgotada e assoreada até a borda faz três anos. A segunda tem segurado os rejeitos da primeira, sobretudo no período chuvoso, mas também é motivo de preocupação, já que o potencial de risco contaminante da mineração de ouro é muito maior que a do ferro.
“O ouro possui resíduos muito mais perigosos, como o cianeto de sódio, ácido cianídrico, arsênio e mercúrio”, explica a ambientalista Daniela Campolina, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas. “O cianeto de sódio usado no beneficiamento do ouro tem padrões de toxidade elevado, e a ingestão de 1 mg por quilo é suficiente para matar uma pessoa”, afirma.
Em setembro de 2014, o MPF recomendou ao DNPM e à Feam a adoção de medidas para conter o problema, já que a mineradora não cumpria suas obrigações legais mesmo recebendo autos de infração em razão de descumprimento de condicionantes e afronta à legislação ambiental.
À época, o procurador da República José Adércio Leite Sampaio, atualmente na força-tarefa que investiga os acontecimentos do rompimento da barragem da Samarco, esclareceu que os “acionistas majoritários da Mundo Mineração simplesmente desapareceram do território nacional”. O procurador afirmou que, “diante da ausência do empreendedor”, caberia ao DNPM e à Feam a manutenção do sistema de contenção da mina, “sob pena de nos depararmos em breve com outra tragédia”.
Ele se referia ao rompimento do talude da barragem B1, na mina Retiro do Sapecado, da Herculano Mineração, que deixou três mortos e um ferido dias antes de a vistoria do DNPM apontar o sucateamento da Engenho. O acidente da mina Retiro aconteceu quando seis funcionários trabalhavam na manutenção da barragem e foram surpreendidos pela lama e rejeitos de minério. A Herculano Mineração já havia sido autuada uma dúzia de vezes pelo Ministério Público, inclusive por falta de programas de gerenciamento de risco.
No caso da Engenho, o pedido do MPF parece não ter surtido o efeito necessário, tanto que em janeiro deste ano o Movimento pelas Serras e Águas de Minas reforçou as denúncias de abandono junto ao próprio Ministério Público, Feam e DNPM. Os ativistas enviaram fotos e vídeos do local, que mostram que após dias de chuva na região a situação das barragens se deteriorava ainda mais. Além disso, a área abriga produtos de alto risco, “no mesmo estado de abandono que o restante do empreendimento”, afirmou a Feam. A lista inclui tanques de gás (GLP), galões de ácido clorídrico, cianeto e soda cáustica, hidróxido de sódio, peróxido de hidrogênio, metabissulfito de sódio e sulfato de cobre.
A última vistoria, em janeiro, registrou o que já se sabia: abandono e risco ambiental iminente. A barragem “encontrava-se com acúmulo de água devido às constantes chuvas ocorridas nos dias anteriores”, disse o órgão, que constatou que “não havia bordas livres” em alguns trechos do talude da barragem, o que significa que a água não poderia ser contida, o que causaria “transbordamento”.
Em nota enviada à Pública, a Feam disse que serão feitas obras emergenciais de reforço da drenagem entre a primeira barragem e a segunda. “Esta intervenção visa reforçar a segurança das estruturas até o fim do período chuvoso”, previsto para o fim deste mês. O cronograma para a realização das obras e o fechamento da mina será definido também em março.
O mais grave é que as barragens da mina de Engenho ficam próximas ao córrego do Vilela, afluente da bacia do rio das Velhas, localizado a 8 km do ponto de captação de água da Bela Fama, da companhia de saneamento (Copasa) que abastece 70% de Belo Horizonte e 40% da região metropolitana. “Os impactos nos recursos hídricos, com potencial de alteração da qualidade das águas, seria muito grande”, afirma a ambientalista Daniela Campolina.
Na recomendação do Ministério Público, José Adércio já alertava para o “risco à vida das pessoas que moram a jusante [termo técnico para “abaixo”] das barragens, especialmente na localidade denominada Honório Bicalho”. Além disso, uma auditoria técnica feita três anos antes recomendava “executar urgente um plano de descomissionamento e paralisação imediata de lançamentos de rejeitos no reservatório”.
No mesmo distrito de Nova Lima, a região de Honório Bicalho, a 10 km de Rio Acima, já tinha sofrido com o rompimento da barragem Rio das Pedras em 1997, que contaminou com lama o rio das Velhas ao longo de 82 km. A região fica no chamado quadrilátero ferrífero, dominada pela Vale S.A., que planeja construir uma nova barragem de rejeitos de minério de ferro na área da “Fazenda Velha”, zona de mil hectares que faz a transição entre os biomas da Mata Atlântica e do Cerrado. O local foi tombado provisoriamente pelo município de Rio Acima por seu valor paisagístico, arqueológico e natural, o que tem canalizado disputas acirradas pela liberação da área para a mineração.
Se o plano da Vale S.A. se concretizar, a capacidade da megabarragem pode ser de 600 milhões de metros cúbicos, ou seja, muitas vezes maior que a de Fundão. Esse empreendimento faria parte do complexo minerador Vargem Grande, que possui atividades em Nova Lima e em Itabirito, na região central. “A área tombada pode ser revertida por pressões da Vale S.A. e de políticos do município, então estamos acompanhando de perto”, diz o ambientalista Paulo Rodrigues, do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela.
Serra do Gandarela ameaçada
Uma das hipóteses do sumiço dos responsáveis da Mundo Mineração Ltda. remete justamente à disputa travada pela criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela, movimento do qual Rodrigues faz parte. “Quando soubemos da existência de outro megaprojeto da Vale S.A., chamado mina Apolo, criamos em 2007 o movimento de preservação da serra do Gandarela, por causa da sua importância hídrica fundamental não só por conta da região metropolitana de Belo Horizonte, mas também para a outra vertente, que é o rio Doce”, explica.
Localizado nos municípios de Caeté, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Rio Acima, Itabirito e Raposos, o Gandarela integra o conjunto da Reserva da Biosfera do Espinhaço, uma das últimas grandes reservas naturais intactas de Minas. Segundo Rodrigues, a região é “a última de grande relevância hídrica que ainda não foi degradada pela mineração de ferro”. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff decretou a criação do Parque sob críticas de que o projeto que norteou os limites da área atenderia muito mais aos interesses econômicos das mineradoras do que aos ambientais de preservação.
Já em 2001, uma notícia se referia à “demora” dos governos estadual e federal em definir a área de abrangência do parque como entrave aos negócios da Mundo Mineração de obter a licença para uma nova mina em Rio Acima, denominada Crista, que ajudaria a diluir os altos custos operacionais da Engenho, viabilizando a operação conjunta.
Ronisdalber Bragança, ex-gerente administrativo financeiro da Mundo, deixou o posto em 2010. Ele contou à Pública que a Engenho fora a primeira operação do grupo australiano no Brasil, que teve as negociações iniciadas em 2006, com investimentos de US$ 28 milhões, sendo R$ 11 milhões na mina e US$ 17 milhões na planta metalúrgica de tratamento do minério. Antes, o local havia sido objeto da exploração da sul-africana AngloGold Ashanti. À época, a estimativa é que fossem extraídas 2,8 mil onças por mês, o equivalente a 80 kg, o que garantiria um faturamento de US$ 45 milhões anuais. O ex-gerente diz que toda a produção era destinada ao mercado externo.
Segundo Bragança, a mina da Crista era apenas uma forma de compensar perdas econômicas na Engenho, e a questão do Parque Gandarela era um empecilho, mas não a causa da inviabilidade do negócio. Por pressão da Mundo Mineração, que alegava ter de demitir funcionários imediatamente, a região da Crista não foi incorporada à área final do Gandarela. “Na realidade o que se extraía de ouro, na prática, não chegou a ser igual àquilo que se tinha no papel em termos de projeto. Se imaginou que fosse ter uma extração maior do produto final, mas o teor era baixo”, diz o ex-funcionário. Ele não sabe precisar, mas exemplifica: “Imagine que o projeto prevê 4 gramas de ouro por tonelada de minério, mas na prática você tinha 2,5 gramas por tonelada. É prejuízo”.
Outro ex-funcionário da empresa ligado ao alto escalão, o australiano Michael Schmulian, era o engenheiro responsável técnico pela Engenho até o final de 2009. Ele recorda que os donos “eram 4 mil” acionistas da empresa na Bolsa de Valores da Austrália. “Tipo a Vale, só que bem menor”, compara. Ele não sabe dizer, no entanto, o que aconteceu depois de sua saída. “Eu fiquei totalmente por fora, soube que por causa de dívidas altas a mina fechou.”
Além do Brasil, a Mundo Minerals fazia mineração de ouro no Peru e até o ano passado mantinha suas atividades minerárias sob novo nome, alterado em 2012, quando passou se chamar Minera Gold Ltd. No entanto, os controladores do empreendimento são os mesmos, em especial o australiano Asley Pattison, CEO da Minera Gold até o ano passado.
Em 2014, ou seja, dois anos após o abandono da mina do Engenho, um documento direcionado a potenciais investidores da Minera Gold Ltd. dizia que foram investidos US$ 50 milhões no Brasil e as minas do Engenho e da Crista ainda eram usadas como chamariz para atrair os interessados. “Todos os obstáculos políticos e regulatórios foram superados”, afirmava um dos itens da apresentação de Asley.
Por outro lado, o relatório anual da empresa de dezembro de 2013 afirmava que, naquele ano, a Minera Gold assinara um acordo de joint venture com um novo investidor privado. O novo sócio aportaria perto de US$ 5 milhões ao longo de 12 meses para ganhar uma participação de até 60% na Mundo Mineração Ltda. O texto anunciava ainda que “o investimento irá fornecer fundos suficientes para cumprir as obrigações de pagamento do processo de recuperação judicial” e que “desde junho de 2013 a companhia não era mais responsável pelo financiamento de capital de giro brasileiro”, portanto já não “consolidava a entidade brasileira” para os seus resultados financeiros.
Em um documento mais recente, de setembro do ano passado, a empresa australiana de consultoria Ferrier Hodgson fez um inventário da Minera Gold e conclui que o negócio não vai bem. Um organograma do mesmo documento confirma as ligações jurídicas entre as empresas Mundo Minerals e Minera Gold. Em nenhum trecho o relatório esclarece que a mina do Engenho está abandonada no Brasil. Afirma somente que foi “interrompida” e que houve um pedido de recuperação judicial em 2012. Procurado pela reportagem, Asley Pattison não retornou o contato até o fechamento da matéria.
Há registros de que, de junho de 2010 a junho de 2011, a mina do Engenho produziu 18,239 onças de ouro, ou seja, perto de 500 kg do minério. As receitas foram da ordem de US$ 25 milhões, valor que provavelmente foi distribuído entre os acionistas.
Quem assume afinal
Após o pedido de recuperação judicial em 2012, a empresa demitiu funcionários e deixou um passivo de dívidas com fornecedores e ex-funcionários que se arrasta até hoje. O representante brasileiro mais citado em documentos e ações judiciais é Júlio César Ferreira da Rocha, engenheiro de minas formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que não foi localizado pela reportagem. A apuração, no entanto, indica que seu último registro de trabalho conhecido é na cidade de Paracatu, pela Votorantim Metais.
De acordo com a Lei Federal 12.334, sancionada há seis anos, a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) deveria se aplicar ao caso da Mundo Mineração, justamente por se referir a questões que envolvem a sustentabilidade e o alcance de seus potenciais efeitos sociais e ambientais. Além disso, o PNSB considera nas suas fases a desativação e uso futuro do empreendimento minerário.
Como relatado, é papel do DNPM fiscalizar as atividades de pesquisa e lavra para o aproveitamento mineral e as estruturas decorrentes dessas atividades. A.A.R, do DNPM-Minas, no entanto, afirmou que o órgão “não tem condições” de descomissionar o empreendimento. Oficialmente, o DNPM não respondeu ao pedido de informações sobre o caso em questão.
No que diz respeito às atribuições da Feam, toda empresa que possui barragens no estado deve entregar anualmente um Relatório de Auditoria, feito por uma empresa independente, contratada pela empresa. “Como a Mundo Mineração abandonou a área e não atendeu mais suas obrigações legais e regulamentares, o Estado judicializou a questão”, informou a Feam. Mesmo condenada, a empresa não cumpriu as medidas indicadas que visavam à segurança da estrutura.
Uma Ação Civil Pública ajuizada em dezembro de 2014 pelo Ministério Público contra o Estado, de autoria da promotora da comarca de Nova Lima, Andressa Lanchotti, registra que o DNPM informou que as barragens não foram cadastradas e por isso não estavam classificadas no PNSB. “Durante a presente vistoria [2013] não foi possível auditar os planos de segurança das barragens do empreendimento, pois nenhum representante da empresa foi encontrado”, afirmou o DNPM.
Além disso, a Mundo Mineração não apresentava declaração de estabilidade das estruturas ao órgão desde 2011, situação similar ao ocorrido com a Feam, que tem registro de relatórios de auditoria da empresa de 2009 a 2011, e depois em 2014. Neste último, o parecer diz: “atividades suspensas e a estabilidade tem restrições, pois devem ter medidas emergenciais a serem executadas até o início do período chuvoso”, o que não foi feito. O parecer diz ainda que era preciso “executar bloqueio de infiltração da drenagem nos diques”, justamente para evitar contaminação fora dos seus limites.
No que se refere à responsabilidade civil do Estado, o texto da ação cita a “falta de fiscalização adequada e eficiente, bem como associada a vícios e irregularidades no licenciamento ambiental”. Por isso, o Estado seria solidário “com os empreendedores pelos danos ambientais ocasionados”.
Existem ainda relatos não confirmados de que houve um acidente em 2010. Segundo um documento do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas a um conselheiro da Área de Proteção Ambiental do Sul da Região Metropolitana (APA Sul), foi “exagerada a rapidez” com que se pretendia licenciar a segunda barragem da Mundo Mineração.
Segundo o ofício, “em relato de conselheiros da APA Sul, a empresa disse que utilizou água oxigenada para neutralizar os efeitos do cianeto que vazara da barragem vertendo para o dique de contenção e possivelmente para o curso d’água que flui para o Rio das Velhas” e que a mineradora “não teria mostrado segurança em demonstrar os procedimentos típicos de um plano de contingenciamento em caso de acidente”. O valor previsto pelo Departamento de Obras Públicas de Minas Gerais (Deop) para descomissionar a mina do Engenho é de R$ 500 mil. 

Fonte: Thiago Domenici - Agência Pública

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