Bem Vindo ao Antropoceno
Se a história geológica da Terra
fosse condensada nas 24 horas de um dia, o homem moderno só surgiria quando
faltassem três segundos para a meia-noite. À primeira vista seria um obscuro
coadjuvante numa movimentada trama de mais de 4,5 bilhões de anos. Mas esse
modesto personagem revolucionou o seu roteiro: sobreviveu a glaciações,
espalhou-se da África para outros continentes, tomou conta do mundo e
interferiu em praticamente todos os ecossistemas.
Sua influência hoje é tamanha que
já se discute se o Homo sapiens merece uma época geológica só para si, o
Antropoceno - a "idade recente do homem". Se confirmada, a era dos
impactos humanos poria o antropoide de 200 mil anos numa dimensão geofísica
comparável à dos asteroides que dizimaram a vida terrestre ou à dos
supervulcões cujas erupções cobriram de nuvens os céus do planeta.
Este é um debate que promete
render. De um lado há cientistas mais conservadores, para quem o homem, por
mais impactantes que sejam os seus feitos, não passa de uma poeira cósmica que
ainda não deixou marca registrada no solo terrestre, aquela que, daqui a
milhares ou milhões de anos, permitiria a um geólogo alienígena concluir, sem
sombra de dúvida, que nossa raça habitou este planeta.
Do outro lado, há um contingente
apreciável de acadêmicos preocupados com o futuro e com a rapidez das
transformações do planeta, que não se importam em rever conceitos. Muitos
estratígrafos - geólogos especializados no estudo da formação e disposição dos
terrenos estratificados (aqueles que se apresentam em camadas sucessivas) - têm
demonstrado abertura para o tema. Um dos mais destacados é o inglês Jan
Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, para quem, se o termo já é usado por
geólogos e ecologistas, merece ter uma definição aceita.
Fração de
Segundo
A história geológica da Terra se
estende por 4,5 bilhões de anos e quatro grandes divisões, ou éons: Hadeano,
Arqueano, Proterozoico e Fanerozoico (o atual). Cada éon subdivide-se em eras.
O éon Fanerozoico (com 543 milhões de anos) tem três: Paleozoico (A), Mesozoico
(B) e Cenozoico (C). As eras são divididas em períodos. A atual era Cenozoica
(65 milhões de anos), tem dois: o Paleogeno (D) e o Neogeno (E). Os períodos,
por sua vez, dividem-se em épocas. O nosso período Neogeno (de 23 milhões de
anos) possui quatro épocas, por enquanto: o Mioceno, o Plioceno, o Pleistoceno
e o Holoceno (iniciado há 12 mil anos). O Antropoceno - a idade recente do
homem - seria uma quinta época. Apenas um ponto na linha do tempo.
"O Antropoceno é
significativo em muitos níveis", afirmou Zalasiewicz à PLANETA. "Em
termos geológicos, ele representa a propagação global de fenômenos que não
haviam sido vistos antes na história de 4,5 bilhões de anos do planeta, e cujos
efeitos, em muitos casos, vão durar milhões de anos. O conceito reflete a
interação de nossa própria espécie com o planeta e nos permite considerar as
consequências de nossas ações coletivas no contexto do 'tempo profundo' da
história da Terra. Por isso, pode tornar-se um fator importante das tentativas
socioeconômicas, legais, políticas e filosóficas para controlar coletivamente o
nosso impacto no planeta." "O conceito do Antropoceno reflete a
interação de nossa própria espécie com o planeta e nos permite considerar as
consequências de nossas ações coletivas no contexto do 'tempo profundo' da
história da Terra." Jan Zalasiewicz, geólogo.
Zalasiewicz começou a ser atraído
para o assunto ao perceber a disseminação que a palavra Antropoceno ganha,
rapidamente, no meio acadêmico. Em 2007, quando presidia a Comissão de
Estratigrafia da Sociedade Geológica de Londres, ele perguntou a 22 colegas
presentes num encontro sua opinião sobre o termo. O resultado não deixou
dúvidas: 21 consideraram o conceito válido.
Evidências
Colhidas
Cientistas reunidos em um
encontro na Sociedade Geológica de Londres, em maio passado, compilaram
indicadores que tornam plausível a ideia de uma "idade do homem".
Paisagem
alterada
De acordo com o geógrafo Erle
Ellis, da Universidade de Maryland (EUA), a humanidade já remodelou mais de 75%
da superfície do planeta. As áreas de natureza intocada correspondem a apenas
23%. O restante engloba terras cultiváveis, lugares povoados e áreas
industriais.
Mudança
climática
A interferência humana no clima
vai alterar a terra, os mares e a atmosfera por milhares de anos, segundo o
climatologista australiano Will Steffens. Isso vai acarretar uma acidificação
de longo prazo dos oceanos por conta do dióxido de carbono, a qual terá impacto
duradouro na formação de rochas no leito marinho.
Solos
transformados
Represas, mineração, erosão e
urbanização já alteraram os solos de forma substancial, diz o geólogo
norte-americano James Syvitski, da Universidade do Colorado em Boulder. A
retenção de vastas quantidades de sedimentos em represas, por exemplo, diminui
a sedimentação em regiões litorâneas.
Mudanças
biológicas
O homem está abrindo caminho para
uma ampla extinção de espécies ao destruir florestas e contribuir para o
aquecimento global. Também está criando novas formas de vida, na agricultura e
na biotecnologia. A agricultura e os meios de transporte levam organismos antes
restritos a determinadas regiões para outros cantos do mundo. Tudo isso será
perceptível para os geólogos do futuro a partir dos fósseis de nossa época.
Zalasiewicz comanda hoje o Grupo
de Trabalho do Antropoceno na Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS, na
sigla em inglês), cuja missão é avaliar se a época proposta possui de fato
méritos para fazer parte da cronologia geológica. O grupo reúne "uma ampla
diversidade de cientistas e pessoas que atuam em humanidades", diz o
geólogo, e está reunindo evidências para apresentar à comissão. A decisão final
sairá das conclusões dos membros da ICS e do organismo que o abriga, a União
Internacional de Ciências Geológicas.
"Antes eu pensava no começo
da Revolução Industrial como o marco inicial do Antropoceno. Mas estou
começando a inclinar-me para o estabelecimento desse marco na Segunda Guerra
Mundial." Paul Crutzen, químico.
Embora alguns jornais e revistas
importantes tenham indicado o 34º Congresso Internacional de Geologia (ICG, na
sigla em inglês), em agosto de 2012, em Brisbane, na Austrália, como um marco
decisivo no debate, os cientistas advertem para não se esperar novidades
importantes sobre o tema na ocasião. Os geólogos são uma comunidade cautelosa
de cientistas, compreensivelmente recalcitrante para reconhecer como mudança
consolidada algo que, em termos geológicos, ainda está na incubadeira.
Para alguns cientistas, o
Antropoceno ainda nem começou. Em termos estratigráficos, ele só ficaria mais
patente nas próximas décadas, com o aumento considerável no nível do mar, por
exemplo. "Brisbane é prematuro para nós", avalia Zalasiewicz.
"Temos o objetivo de montar uma proposta para a ICG seguinte, no prazo de
cinco anos. Fazer alterações na Escala de Tempo Geológico é um processo lento e
cuidadoso, devido ao papel fundamental da Escala de Tempo para a geologia. O
Antropoceno é, em muitos aspectos, uma questão mais complexa do que a
consideração de intervalos anteriores do tempo geológico."
O surgimento da agricultura foi
responsável por desmatamentos e maior emissão de CO² no ar.
Seja qual for o resultado do
processo, é inegável que o termo já entrou para o glossário científico. Cunhado
na década de 1980 pelo biólogo norte-americano Eugene Stoermer, o conceito
começou a ser popularizado em 2000 pelo químico holandês Paul Crutzen. Vencedor
do prêmio Nobel de 1995, pela descoberta dos efeitos danosos de compostos na
camada de ozônio, Crutzen assistia a um simpósio no México no qual seu
presidente referia-se várias vezes à presente época geológica, o Holoceno,
iniciada há cerca de 12 mil anos, com o fim da última glaciação. Incomodado com
a recorrência no uso do termo, o químico não resistiu e pediu a palavra:
"Precisamos parar com essa história. O Holoceno já ficou para trás. Agora
estamos no Antropoceno!"
No intervalo para o café sua
intervenção já era o assunto mais comentado, sinal de que a ideia ressoava no
meio científico. Em 2002, o holandês desenvolveu o conceito em um artigo
publicado na revista científica Nature e com isso pesquisadores de diversas
disciplinas passaram a utilizá-lo. Não demorou muito para a palavra se tornar
comum em órgãos de divulgação científica.
Uma vez que se aceite o
Antropoceno como época geológica, é necessário definir quando o período
começou. Ao divulgar o termo, Crutzen pensava inicialmente no início da
Revolução Industrial, em meados do século 18, quando os níveis de gás carbônico
começaram a se acumular na atmosfera, uma alteração confirmada por amostras de
núcleos de gelo. A maioria das pessoas que usa a palavra adota esse ponto de
vista, mas o próprio Crutzen está revendo a ideia. "Estou começando a
inclinar-me para o estabelecimento do marco na Segunda Guerra Mundial", o
início da era nuclear".
Para o paleoclimatologista
norte-americano William Ruddiman, da Universidade da Virgínia, o começo do
período deveria ser estabelecido bem antes: no início do Holoceno. Ele lembra
que a agricultura se disseminou há cerca de 8 mil anos, desflorestando várias
regiões do planeta, gerando um incremento de gás carbônico na atmosfera capaz
de evitar uma nova idade do gelo. Outros cientistas consideram que o
Antropoceno deveria ser datado em meados do século 20, quando se iniciou uma
acelerada expansão do crescimento demográfico e do consumo dos recursos
naturais.
As indefinições não impedem que a
expressão se espalhe. Alguns cientistas e pensadores veem nela uma espécie de
sinal de arrogância da raça, reveladora do fato de que "possuímos" a
Terra e a estamos exaurindo - um exemplo da hybris (soberba) da mitologia
grega, cuja punição divina era fazer o pecador voltar aos limites que havia
transgredido. No geral, a palavra Antropoceno é usada como um imenso sinal
amarelo no que se refere aos impactos humanos sobre nossa morada planetária.
Crutzen já declarou que esperava que a disseminação do termo fosse "um
alerta para o mundo".
As atividades de mineração
alteram fortemente os solos em que estão localizadas.
"Inauguramos uma guerra
total contra Gaia", diz o teólogo Leonardo Boff. "Ela precisa de um
ano e meio para repor o que o ser humano lhe rouba num ano. Se não contivermos
esse movimento, ele poderá nos levar a um caminho sem retorno, numa Terra devastada,
coberta de cadáveres e com parca vitalidade. Nessa guerra, não temos chance de
ganhar. A Terra não precisa de nós; nós, sim, precisamos da Terra. Ela pode
continuar sem nós até que surja um ser complexo capaz de suportar a
consciência, o espírito e a inteligência."
Recentemente, a revista Nature
defendeu em editorial a adoção do termo Antropoceno como uma oportunidade para
fazer os seres humanos reformularem seu papel na Terra: "O conceito
encorajaria uma atitude mental que será importante não apenas para entender por
completo a transformação que está ocorrendo agora, mas para agir a fim de
controlá-la."
Zalasiewicz e Crutzen salientam
que a validação formal dos geólogos teria o poder de ajudar a integrar as
discussões sobre o papel da humanidade nas várias disciplinas científicas. Essa
nova postura, permeada por uma consciência ética sobre o convívio com o
planeta, pode resultar na reformulação necessária. Trata-se, no entanto, de uma
tarefa indigesta, politicamente complicada, que exige mudanças nos modos de
produção e consumo cujas dificuldades aumentam ainda mais em tempos de crise
econômica como a atual.
"Os princípios de
responsabilidade e de cuidado são axiais para um novo rumo civilizatório
global", observa Boff. "Mas essa consciência ainda não chegou aos
tomadores de consciência. Talvez só chegue quando se realizar o que Hegel
prognosticou:
“O ser humano aprende da história
que não aprende nada da história; mas aprende tudo do sofrimento”.
Quando a crise global atingir a
pele de todos, todos darão o máximo de si para salvar-se, porque esse é o
instinto de vida, mais forte do que o instinto de morte.
"Gaia precisa de um ano e
meio para repor o que o homem lhe rouba num ano. Se não contivermos esse
movimento, ela poderá nos levar a um caminho sem volta. Nessa guerra, não temos
chance de ganhar." Leonardo Boff, teólogo.
Comentários
Postar um comentário