ECO-RPO - Ecologia do Corpo


“O mal é um estado de carência e a felicidade uma qualidade do desejo”
Alair Negri
Ecologia é a ciência que estuda as interações entre os organismos e seu ambiente, ou seja, é o estudo científico da distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam ou condicionam sua distribuição, considerando-se o aspecto espaço-tempo. As interações podem ser entre seres vivos ou destes com o meio ambiente.  O meio ambiente humano estabelece, assim, interdependência tanto dos elementos naturais, sejam orgânicos ou inorgânicos, quanto dos culturais que fundamentam a vida humana nos diversos espaços em que ela se desenvolve.  O ambiente pode ser percebido e analisado, também, em diferentes escalas espaciais e temporais: de nossa mesa de jantar ao planeta como um todo; do nosso ponto de vista ao nascer do sol, ou de nossa percepção em um rigoroso inverno.
Derivada do grego, em que “oikos” significa Casa e “logos” significa Estudo, por extensão a Ecologia seria o Estudo da Casa, ou, de forma mais explícita, o estudo reflexivo do lugar onde se vive, a análise das interações dos elementos que compõem a Vida e dos cuidados a serem implementados para a preservação da própria Vida. Assim, por meio das informações geradas pelos estudos da Ecologia, o homem pode planejar ações que evitem a destruição do meio ambiente, possibilitando um presente melhor para si mesmo em escala pessoal e um futuro mais promissor para a própria humanidade. Pesquisas e estudos realizados na área compreendida por essa ciência fornecem dados que revelam se os animais e os ecossistemas estão em perfeita harmonia, pois a questão da equilibração, compreendendo aqui os aspectos da assimilação, da acomodação e distribuição dos seres vivos, é de extrema importância para a continuidade das espécies, incluindo-se aí o Homem.
Por se tratar de uma ciência ampla, a Ecologia apresenta vários ramos de estudo e pesquisa, tais como a Autoecologia, Sinecologia -(Ecologia Comunitária), Demoecologia (Dinâmica das Populações), Macroecologia, Ecofisiologia (Ecologia Ambiental) e Agroecologia. Diversos ramos têm surgido utilizando diferentes áreas do conhecimento, como Biologia da Conservação, Ecologia da Restauração, Ecologia Numérica, Ecologia Quantitativa, Ecologia Teórica, Macroecologia, Ecofisiologia, Agroecologia, Ecologia da Paisagem, Ecologia Emocional etc. Ainda se pode dividir a Ecologia em Ecologia Vegetal e Animal e ainda em Ecologia Terrrestre e Aquática.
A constante análise do meio ambiente, a verificação das alterações dos mais vários ecossistemas pela ação do homem e as considerações sobre os objetivos, campo de atuação e objetos de estudo da própria ciência, levou à reconsideração  dos conceitos ecológicos. Incluem-se, assim, os conceitos referentes à Ecologia Humana, que estuda as relações entre o homem e a biosfera, principalmente do ponto de vista da manutenção da sua saúde, não só física, mas também social, compreendendo-se aqui os aspectos culturais, psíquicos, emocionais e espirituais.
Nesse  texto vamos considerar os aspectos relativos às relações do homem consigo mesmo; considerar o lugar original e natural onde se vive, ou seja, seu ambiente primordial: o corpo e sua corporeidade; considerar, enfim, as relações de corporeidade com o mundo como princípio básico que fundamenta as boas relações de respeito, preservação e cuidado com os outros seres e com o meio ambiente em geral.
É cada vez mais imperioso entender que devemos nos preocupar com o Meio Ambiente. Mas é vital entendermos que o ambiente natural, o ecossistema original, com o qual convivemos, é o nosso próprio corpo. Ele, em suas relações com o mundo extensional, os objetos, as situações, os fenômenos etc, é um agente sensível da construção e reconstrução de nós mesmos e do próprio mundo do qual participamos. Reunindo diferentes dimensões corporais, nossa constituição humana vai além dos aspectos biofisiológicos. As diferentes vinculações do nosso corpo com a realidade, com o meio ambiente, nos levam a estender o conceito de corpo para o conceito de corporeidade. É a partir do conhecimento das diversas ações e reações, dos múltiplos discursos formulados pelo nosso corpo que podemos compreender melhor as questões ecológicas que tanta importância tem em nossos dias.
Nosso corpo não é apenas uma parte inserida na realidade, uma mera constituição biológica, estudada pela fisiologia, psicologia, biologia etc. Nosso corpo é o próprio mundo e tudo o que o corpo constrói como conhecimento é produto de sua interdependência com o Universo, seja o meio natural, seja o mundo das relações sociais e culturais, seja o mundo dos pensamentos, dos sonhos e da fantasia. Nele estão impressas todas as percepções, positivas ou não, e que vão se reestruturando na medida em que, consciente ou inconscientemente, nos relacionamos com o meio ambiente, com a sociedade. A essa gama de elementos biopsicossociais, culturais e espirituais que nos move, nos estimula, nos bloqueia, nos traumatiza e nos orienta, é que denominamos de corporeidade humana.  Sempre interagindo entre si e com a realidade, os elementos que compõem nossa interioridade, nossos valores, nossa forma de perceber e analisar o mundo, estruturam nossa forma de ser e nos abrem possibilidades de evoluir.
Aqui não vamos tratar apenas do corpo como fonte de percepção da realidade, por meio dos sentidos, mas estaremos considerando todos os fatores que compõem nossa interioridade e que podem auxiliar ou dificultar nossas relações com o mundo. Mas corpo e corporeidade não se excluem. A corporeidade só se realiza no corpo, nele imprimindo impressões que o estruturam. A corporeidade, assim, é o que dá significado ao nosso corpo e, por ela, utilizamos o corpo como instrumento relacional com o Universo.
A corporeidade é sempre retrabalhada a partir dos estímulos do mundo. Por meio desses estímulos estabelecemos uma reestruturação de nós mesmos. Estamos sempre dialogando - ou monologando - conosco mesmo, nos reorientando, nos analisando, nos culpando, nos absolvendo em alguns juízos, nos absorvendo em energias inúteis, nos recriminando, nos auto infringindo determinadas regras sociais, cotidianamente nos traindo e minimizando as traições.
Enfim, o diálogo, ou o monólogo, é a base da relação que mantemos com nossa corporeidade. Torná-lo ao mesmo tempo mais claro e mais efetivo, vai nos tornar menos dependentes da ansiedade de nos tornarmos independentes. Vamos saber, realmente, o que desejamos de nós e dos outros. As pessoas melhor orientadas sempre sabem melhor o que desejam. A ecologia da corporeidade é, assim, uma relação educativa para o conhecimento de si mesmo, ou seja, é o conhecimento aplicado à ampliação do autoconhecimento. E, em última instância, todo conhecimento só tem valor se for aplicado ao autoconhecimento. Assim, a interdependência entre Ecologia e Evolução é bem evidente, e ambas se completam, pois são ramos da ciência da Vida.
Estabelecido um bom diálogo com nossa corporeidade, vamos perceber que a boa interdependência é um valor bem mais considerável que a independência, pois, afinal, não nos é possível relegar as relações com o mundo e com o outro. E, absolutamente, a ninguém é dado o atributo de ser totalmente independente. Se isso pudesse acontecer, nossas próprias vísceras não nos cobrariam tanto por meio da fome e da sede, só para ilustrar nossas necessidades mais básicas. Estabelecer uma salutar interdependência com o meio ambiente e com os nossos semelhantes é uma forma de transitar elegantemente sobre as pedras do caminho, pisando nelas de forma mais leve.
A realidade, em nosso interior, é um reflexo de si mesma. Reflexo por vezes esmaecido por nossa diminuta visão de mundo, por vezes congelado por nossa insistência em permanecer no umbral daquela antiga porta já deteriorada do passado e que não desejamos que se feche, por vezes alongado por nossos bons sonhos, mas que nada fazemos para realizá-los. E se a realidade em nossa interioridade é um reflexo - modificado - de si mesma, a realidade que nos circunda passa a ser o reflexo daquilo que praticamos para transformar nossa corporeidade. Interdependência mais profunda do que esses processos vitais, que pulsam em nós e no ambiente em geral, é impossível.
Só para ilustrar, a própria realidade dos fenômenos no mundo nos dá o exemplo: o reflexo de um arco-íris é o contrário de si mesmo. A primeira cor - violeta - no interior do primeiro arco está refletida como última cor, no exterior do segundo. Mas o próprio primeiro arco-íris já é uma reflexão da incidência da luz do sol no interior das gotas da chuva. Isto quer dizer, nas relações com o mundo, o outro pode nos estimular a que reflitamos o contrário daquilo que congelamos em nós e passarmos a cuidar melhor de nosso ecossistema pessoal e, consequentemente, de nossas relações com a realidade. 
Compreendemos que o mundo como o percebemos - extensão de nós mesmos -, cujo sentido é captado por nossa corporeidade construída ao longo de nossas experiências, pode nos estimular a reencontrar o sentido da nossa interioridade e, consequentemente, da Vida. Pode nos estimular a reencontrar o sentido das relações com a realidade e com o outro; sentido que, depressiva ou descuidadamente, deixamos congelar em nosso interior. O estado de carência, provocado por diferentes fatores em nossa história de vida, aumenta o iceberg humano e pode ressecar a relação que estabelecemos com nossa corporeidade e com a realidade. 
É bem conhecido o lembrete, o pensamento, o ditado, o provérbio, seja lá como o classificamos: “É preciso amar a si mesmo para amar o mundo.” Mas podemos ver o contrário disso, se considerarmos que amar também se aprende (aliás, também a odiar, odiar-se, alimentar, alimentar-se, andar, subir em postes, empinar papagaios, etc...etc....), e se partirmos do princípio de que o homem é geneticamente social.
Então, pode acontecer o inverso, considerando a frase acima: o mundo pode nos estimular a amar-nos a nós próprios, seja por estímulos da própria cultura, seja por estímulos da corporeidade do outro.  A corporeidade do outro no mundo - sua forma e ser, sua temperança, seu transitar pela vida - passa a ser o estímulo que nos move na busca da motivação, do sentido ou do amor que deixamos adormecidos, elementos esses agora realimentados pela esperança de nossa reconquista interior e da preservação da significação da Vida que encontramos a partir do outro. Passamos a refletir e a cuidar melhor de nós mesmos, motivados pelas possibilidades que se abrem. Nossa corporeidade se ressalta e, desperta, estabelece um novo reequilíbrio, antes adormecido nos processos de desmotivação com o mundo.  Não gostamos apenas do corpo do outro; gostamos do outro mesmo, de sua corporeidade.  Se o corpo nos atrai, a corporeidade nos motiva a realimentar nossas possibilidades de transformação. E, com isso, a pessoa reaviva processos de aprendizagem de si mesma e continua a transformar-se pela interdependência que estabelece com a realidade, seja essa realidade o humano, o animal, o vegetal, o mineral ou mesmo o elemental de sonhos e fantasias.  Se antes o estado de carência se estabelecia como um mal, agora a felicidade emerge como uma qualidade do desejo em ser mais diante de si mesmo.
Em uma visão bem pragmática, a ecologia da corporeidade é o processo de cuidar de si para estar melhor apto a cuidar do mundo. É ter total e profunda compreensão de si mesmo como parte integrante do Um, como agente e paciente proativo e reativo, integrante e funcional do Planeta.
É conhecido também o ditado “ninguém dá o que não tem” e, em termos ecológicos, somente podemos fazer aquilo que somos. Apenas aquilo que nossa corporeidade já vivenciou em termos de experiências, pré juízos, valores, êxtases, traumas etc é o que conseguimos expressar ao mundo exterior.
A título de exemplo, se achamos inútil ou prosaica a ideia de economizarmos a energia que move nossos aparelhos, talvez, em última análise, é porque somos pródigos em desperdiçar nossa energia interior em situações inúteis..., ligando-nos continuamente em situações que já não nos trazem mais bem pessoal nenhum; quer dizer, também é difícil ou não nos preocupamos em desligar nossa interioridade daquilo que já não nos oferece bons motivos. Analisando nossa interioridade podemos encontrar muito bem outros diferentes exemplos de nossa relação com a realidade.
Em termos ecológicos - e exemplo salutar de relação com o mundo exterior -, queremos eliminar resíduos, reciclar lixos, compartimentalizar dejetos; mas é importante também nos preocupamos em reciclar conceitos, valores, atitudes ou em eliminar o lixo interior que sobrecarrega nosso dia a dia, por meio da compreensão de nós mesmos e da compreensão da relação que temos com o outro.
Ecologia da Corporeidade é, assim, a preservação de nossa própria natureza humana. É o processo relacional de se encontrar, identificar e expressar nossa natureza pessoal, nossas idiossincrasias, nossa total forma de ser, essa natureza pessoal, única, individual, que no mundo e na vida nos caracteriza e nos faz felizes ou infelizes. Ela nos possibilita o retorno ao essencial de nós mesmos, construído ao longo de nossas interações com o ambiente natural e cultural. É o encontro da coragem de ser diante de si mesmo, redesenhando sua autenticidade, se esmaecida, ou complementando-a, se necessário. Compreendendo e preservando essa nossa essência ecológica, (o estudo e a reflexão sobre nossa Casa, nosso Ecológico) somos capazes de entender que não há polaridade homem-ambiente, pois somos Um. Assim, qualquer prática sustentável será uma extensão de nossa corporeidade, de nosso interior, e, logicamente, estará refletindo nosso patamar de evolução.
Portanto, se somos Um, podemos inferir que nós, humanos, somos  nanocósmicos. Isto quer dizer que somos compostos das mais perfeitas partículas e potencializados das mais amplas possibilidades. Estabelecendo-se outro paralelo com nosso mundo extensional, podemos compreender que se uma infinidade de florestas está latente nas potencialidades do núcleo de uma semente, uma infinita gama de realizações está pulsando em nossa capacidade humana. A bem orientada reflexão e a boa relação com nossa corporeidade nos possibilitam oferecer a essa bela adormecida capacidade o conhecimento de nós mesmos como o toque de despertar.. Mas o despertar é sempre um desafio à transformação. E se o desafio está nas relações consigo mesmo e com os outros, a proteção e a preservação da vida se evidenciam nas relações de cuidado. Relações de cuidado são, enfim, o processo de transformação, equilibração e manutenção da nossa existência e da existência harmônica do Planeta.
No processo interacional com nossa corporeidade, o princípio básico de saber cuidar de si mesmo é o verdadeiro valor para a salutar interdependência e efetiva relação de cuidado com o meio ambiente. Não sendo assim, estabelecem-se relações de hipocrisia com a realidade em geral, e a hipocrisia não pode ser o combustível que move usinas de reciclagem na ecologia da corporeidade. Nosso corpo é, sem dúvida, politicamente correto e juridicamente justo, pois sua estratégia é sempre promover a equilibração do nosso eu com o ambiente que nos circunda, quando de algum colapso adaptativo, evidenciado pelo stress. As relações hipócritas apenas irão mascarar ou adiar as manifestações pouco salutares em nossa própria corporeidade. E se o que se busca é a preservação da vida, a harmonia e a felicidade, com certeza esse não é o caminho.
É evidente que a felicidade é um estado de ser que subjaz e se reequilibra a qualquer grande estado de euforia ou a qualquer profundo estado de tristeza. Portanto, uma estrutura empírica equilibrada é aquela que procura sempre estabelecer relações de assimilação e manutenção de si mesma e de suas relações com o mundo, já que nossa corporeidade é, ao mesmo tempo, um universo que se relaciona com o Universo, que é extensão de nós mesmos. Somos, assim, nanocósmicos, porque compomos um ecossistema que se insere em um macrossistema planetário e cósmico.
Claro que nem tudo é possível fazer e nem tudo é possível transformar. Mas fica evidente que, se não conseguimos beijar o próprio nariz – pois há coisas que, mesmo próximas, não conseguimos alcançar – pelo menos saibamos cuidar do próprio cotovelo, antes de nos lançarmos a coisas, as quais, mesmo circundantes, não nos cabem, ou não podemos operar. Mas partir do princípio da verdade e do possível, estabelecendo-se um intercâmbio ecológico com nossa interioridade, é o principal caminho para alcançarmos equilíbrio  e bem estar com o mundo.
Porém é importante ressaltar-se que não há caminho, pois caminho se faz ao caminhar.
 
Fonte: Alair Negri

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